G1
SÃO PAULO - O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) começou a estudar, nesta sexta-feira (4), processos envolvendo motoristas que cometeram acidentes gravíssimos, dirigindo embriagados, em alta velocidade, na contramão ou em disputa de "rachas" no Rio Grande do Norte, em Pernambuco e na Paraíba. O objetivo, segundo o procurador geral do instituto, Alessandro Stefanutto, é entrar com ações regressivas para ressarcir os cofres da Previdência Social pelos gastos provocados pelas infrações de trânsito.
De acordo com o Ministério da Previdência Social, R$ 8 bilhões são gastos anualmente com despesas decorrentes de acidentes de trânsito no país. A primeira ação foi protocolada na Justiça Federal de Brasília nesta quinta-feira (3). "Quero deixar claro que não é uma caça às bruxas", disse Stefanutto.
"Estamos fechando acordos de cooperação com órgãos públicos, como Ministério Público e a administradora dos seguros DPVAT. Os dois organismos vão mandar as informações de seus bancos de dados para cruzamento com as informações dos benefícios do INSS. A partir daí, teremos uma listagem com passíveis casos, que serão investigados para encontrarmos elementos de convicção como provas e testemunhas", disse.
A procuradoria informou que não será qualquer acidente de trânsito que permitirá o ingresso da ação de ressarcimento. "O primeiro critério será o encontro de infrações de trânsito de natureza gravíssima e que tenha provocado prejuízo ao INSS. Também vamos levar em conta os processos que tenham provas suficientes, pois não queremos fazer uma aventura jurídica", afirmou Stefanutto.
A análise dos dados nestes três estados está sendo feita pela procuradoria geral do INSS. "Estou cuidando disso pessoalmente disso e tenho apoio de outros cinco procuradores e subprocuradores. Em dezembro, vamos assinar o convênio de cooperação com a administratora dos seguros DPVAT", disse.
O procurador afirmou ainda que o processo para implementação da sistemática será demorado. "É um projeto de longo prazo. Até o final de dezembro, devemos entrar com mais três ações como a que entramos ontem. Esses três casos foram escolhidos e estudados para gerar tese em 2011. No próximo ano, esse projeto já vai estar mais estruturado e devemos aumentar satisfatoriamente o número de processos.".
''Modelo de sucesso''
Segundo ele, o procedimento é o mesmo usado nas ações regressivas de acidente de trabalho, feito desde 1991. "Não é a primeira vez que o INSS vai buscar o ressarcimento de recursos que tiveram a ação direta de pessoas ou empresas para provocar acidentes. O INSS registrou mil ações em 2009 e 2010 para reaver esses valores originados de acidentes de trabalho. Esse é um modelo de sucesso que será copiado. Dos mais de 1,8 mil processos trabalhistas, tivemos 95% de êxito e a recuperação de bilhões de reais. Além disso, teve um efeito didático eficaz e é o mesmo que esperamos para os processos de acidentes de trânsito."
Para Marcelise Azevedo, especialista em direito previdenciário, a Previdência alega o sucesso da ação regressiva na área trabalhista como um modelo para as ações de trânsito, mas considera que a comparação não é correta porque não existe uma legislação previdenciária específica para trânsito. “A lei previdenciária é clara quando diz que, quando se trata de acidente de trabalho, o empregador que concorreu para aquele acidente responde. Respondendo, cabe uma ação regressiva contra ele. O INSS verifica o nexo causal, a culpa e dolo do empregador e aciona em regresso o empregador.”
Quanto à ideia defendida pelo Ministério, de que a ação teria caráter pedagógico, ela defende que não é este o papel da ação regressiva. “Não acho que essa ação deva ter caráter educativo. O caráter é arrecadatório. Quem tem que fazer esse tipo de educação é o direito penal, o direito criminal, a justiça penal, que tem que educar o infrator do trânsito.”
Fim da violência no trânsito
O procurador explicou que a bancada de procuradores do INSS teve a ideia de agregar algum tipo de ação que pudesse colaborar para a diminuição de acidentes graves. "É uma medida didática, não temos a pretensão de dizer o que estamos fazendo vai acabar com a violência no trânsito. O primeiro caso que protocolamos teve quatro mortes e grande repercussão midiática. A violência do acidente está muito clara, não há dúvidas sobre as implicações gravíssimas do acidente, o motorista dirigia em ziguezague, a embriaguez ao volante foi comprovada e ele estava acima da velocidade permitida", afirmou Stefanutto.
Risco ordinário
O entendimento da procuradoria geral do INSS é o de que dirigir carro é um risco natural, ordinário. "Mas se o motorista se embebedar, consumir drogas e dirigir em alta velocidade, esses fatores fazem com que o acidente deixe de fazer parte do risco ordinário. A Previdência não é um órgão de trânsito, só temos o instrumento jurídico para agir", disse o procurador do instituto.
Estimativa de vida
Stefanutto disse que o processo que foi protocolado nesta quinta-feira já provocou um custo de R$ 90 mil ao INSS e que a análise da perspectiva de vida da viúva que pode chegar a 73 anos, seguindo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o benefício a ser pago para ela pode chegar perto de R$ 1,3 milhão. "O prejuízo maior aqui foi a morte de um cidadão."
Casos antigos
Segundo presidente do INSS, Mauro Luciano Hauschild, o governo pode buscar até mesmo acidentes mais antigos, como em 1995, por exemplo. Entretanto os valores buscados não poderiam exceder os últimos cinco anos. "Os efeitos financeiros são dos últimos cinco anos", explicou ele.
"Vai depender de caso a caso. Nada impede que eu analise casos com mais de cinco anos. Há uma norma legal para isso, os casos com processos penais não têm a prescrição do crime enquanto houver ação penal. Eu posso voltar há um caso de dez anos e pedir todo o ressarcimento", disse Stefanutto.
A procuradoria do INSS disse que não vai envolver as vítimas ou os familiares das vítimas de acidentes de trânsito nos processos regressivos. Elas continuarão a receber os benefícios.
''Nome sujo''
Segundo a procuradoria geral do INSS, se o responsável pelo acidente não tiver como pagar o ressarcimento, será pedida a inclusão do nome dele em dívida ativa e no cadastro de inadimplentes. "Vamos tomar todas as medidas cabíveis para provocar o constrangimento necessário, dentro da lei, para que ele pague o ressarcimento. Nem que seja o bloqueio parcial do salário. Vamos monitorar a aquisição de bens após o acidente e até recebimento de herança", disse Stefanutto. "Não há risco de prisão, o direito brasileiro não permite", finalizou.
Impedimento prático
O ajuizamento da ação regressiva do INSS cobrando de um motorista infrator o valor gasto pela Previdência com pensões não tem nenhum impedimento legal, segundo advogados, mas abre uma grande dúvida sobre como vai ser a aplicação prática dessa cobrança de ressarcimento.
Para Marcelise Azevedo, a ação tem problemas para sua aplicação na prática. “A minha impressão é de que o INSS busca fazer uma onda para fazer com que as pessoas se conscientizem”, disse. “Acho que a ação foi um balão de ensaio para ver como a justiça vai reagir, e depois disso é que vão ver se isso dá certo ou não.”
Em entrevista ao G1, ela explicou que um dos principais problemas é o estabelecimento de critérios para selecionar os casos que vão gerar ação regressiva. “A questão é entender o limite. Até onde o INSS pode ir nessas ações judiciarias? O INSS vai acionar todas as pessoas que se envolveram em acidente de trânsito? Ou vai acionar quando tiver culpa? Vai acionar quando tiver dolo e culpa? Como vai fazer?”, disse.
Ela citou o princípio da isonomia, de que todas as pessoas são iguais sob a lei, para explicar que a Previdência deverá processar todos que se envolveram em acidentes com vítima, ou não vai poder processar ninguém. “Pelo principio da isonomia, todo mundo tem que ser tratado igualmente. Acho que o INSS não dá conta disso. Eles vão escolher um grupo de pessoas para acionar? Com que critério? Tem que ter isonomia. O INSS não pode escolher. É preciso ter critérios muito bem definidos. Não pode ficar ao livre arbítrio do estado definir quem vai ser processado em regresso e quem não vai ser. É preciso ter regras claras.”
Segundo Azevedo, o INSS tem obrigação de cobrir o chamado "risco social". “A morte é um risco social. A lei previdenciária não diz que alguns tipos de morte devam ser cobertas integralmente pelo INSS e outras não. A lei diz q o INSS tem que cobrir qualquer tipo de morte, pagando o risco social para quem foi vítima de uma acidente de trânsito.”
A advogada diz ainda que este tipo de ação em caso de acidente pode abrir o debate para questões ainda mais amplas. “Alguns advogados já questionam se essas ações regressivas vão chegar a outras áreas do direito. Imagine, por exemplo, que uma pessoa é morta durante um assalto a banco, o INSS vai acionar o assassino caso a morte gere pensão? Vai acionar todos os casos de morte com dolo? Vai acionar todos os criminosos?”